Fundamentos do Som para Cinema: Teoria, Técnica e Emoção
Anderson Benvindo
Introdução
O Som: Conceito Físico e Propriedades
O som é, fundamentalmente, energia. Ele nasce da vibração de um corpo, a partir de um impacto/ataque (como uma corda, uma membrana ou as cordas vocais) que causa uma perturbação no meio elástico ao redor (geralmente o ar). Essa perturbação se propaga em ondas e é captada por nossos ouvidos.
Quatro propriedades definem a experiência auditiva e são as que manipulamos no Sound Design:
Exemplos Cotidianos:
Volume: Uma conversa normal (baixo dB) versus o barulho de um avião decolando (alto dB).
2. Altura - Frequência (Velocidade da vibração) - é medida em Hertz (Hz)
Exemplos Cotidianos:
Grave vs. Agudo: A voz de uma criança (alta frequência/agudo) versus o som de um trovão (baixa frequência/grave).
3. Duração - Tempo (Permanência da vibração) - é medida em segundos/minutos/milésimos
Exemplos Cotidianos: O tempo que você segura uma nota cantada ou a duração de um relâmpago, ou mesmo a duração e intervalo entre uma batida e outra de um tambor.
4. Timbre - Forma da Onda (Conjunto de harmônicos) - Não é medida em unidades, é um espectro.
Exemplos Cotidanos: O que permite distinguir um violão de um piano tocando a mesma nota na mesma intensidade. É a identidade da fonte sonora.
A distinção entre som musical e ruído, de forma simplificada, reside na organização das vibrações (frequências):
Som Musical - Ondas sonoras com frequências regulares e harmônicas bem definidas (padrão periódico). É "agradável", reconhecível, tem melodia e altura definida. EX.: Uma nota de piano (Dó) ou o canto de um pássaro.
Ruído - Ondas sonoras com frequências irregulares e não periódicas (o som é caótico). É "desagradável", não possui altura definida e causa "desconforto". EX.: O estouro de um pneu, o chiado de um rádio fora do ar, ou o ruído de set não limpo.
Embora a definição física separe som musical (frequências regulares) de ruído (frequências irregulares), a experiência humana e o contexto artístico desconstroem essa fronteira:
A partir da metade do século XX, com o desenvolvimento da Música Concreta e da Música Eletroacústica, o ruído deixou de ser um defeito e se tornou uma matéria-prima:
Aplicação no Sound Design: O Drone (zumbido grave constante usado em filmes de suspense) é um ruído na física, mas, quando usado para criar tensão e expectativa, ele se torna um elemento musical extradiegético.
O compositor e pesquisador canadense Murray Schafer focou no estudo da Paisagem Sonora (Soundscape), que é o ambiente sonoro percebido.
A subjetividade vai ainda mais fundo com fatores psicológicos:
O Áudio Digital: Conceito e Envelope ASDR
O áudio digital representa a onda sonora em dados binários através de duas propriedades: a Taxa de Amostragem (quantas vezes a onda é medida por segundo, definindo a frequência máxima) e a Profundidade de Bit (quantos bits definem a amplitude de cada medida, definindo a gama dinâmica e o ruído).
O ASDR (Ataque, Decaimento, Sustentação, Relaxamento) descreve as quatro fases dinâmicas do volume de um som, definindo seu caráter e timbre:
Ataque (Attack): O tempo que o som leva para atingir seu pico máximo de volume. (Exemplo: O golpe seco de um martelo tem um Ataque instantâneo.)
Decaimento (Decay): O tempo que o som leva para cair do pico de Ataque até o nível de Sustentação.
Sustentação (Sustain): O volume que o som mantém enquanto a fonte sonora ainda está ativa. (Exemplo: A nota constante de um sintetizador.)
Relaxamento (Release): O tempo que o som leva para ir do nível de Sustentação até o silêncio total, após a fonte ter cessado. (Exemplo: O tempo que a reverberação de uma sala leva para desaparecer.)
O som no cinema é uma linguagem poderosa que se comunica com o espectador no nível subconsciente. Utilizamos a Semiótica (Teoria dos Signos de C.S. Peirce) para analisar a relação entre o som (signo) e o que ele representa (objeto).
1. O Som e a Comunicação Emocional
O som é um catalisador emocional. O Sound Designer manipula a realidade sonora para guiar a emoção do público, utilizando o som como um índice (sintoma) de estado mental:
Ex.:
Ansiedade: Intensificação de sons banais (respiração, tic-tac) ou uso de dissonância na música.
Perigo: Uso do silêncio súbito como um alerta.
Ironia: Contraponto entre uma imagem séria e uma música alegre (simbólica).
2. Categorias de Signos Sonoros (Ícone, Índice e Símbolo)
ÍCONE: Similaridade, Imitação
O som se parece com o objeto do sino original.
Ex: A gravação de um sino é um ícone
ÍNDICE: Conexão Física, Causa-Efeito, Sintoma
O som é causado pelo objeto ou é um vestígio.
Ex: O som de passos é um índice de alguém caminhando. Tensão em uma corda musical é índice de ansiedade.
SÍMBOLO: Convenção Cultural, Arbitrariedade
O significado é aprendido.
Ex: Um Leitmotiv (tema musical) que representa um personagem é um símbolo. Ouça o tema da "Marcha Imperial” de Star Wars composto por John Williams.
Valor Acrescentado é a qualidade ou significado expressivo e informativo que o som adiciona a uma imagem, e vice-versa, quando os dois elementos são combinados.
Não é uma soma simples (Som + Imagem), mas sim uma multiplicação de significado.
Módulo 02: Diegese e Perspectiva Auditiva
1. Conceito de Diegese
Diegese é o universo ficcional completo da história, incluindo tempo, espaço, personagens e eventos. É o sistema de referência que define se um som tem uma fonte dentro desse mundo.
Um som ou música pode ser abordada como uma transição em relação à diegese, ao iniciar com o som ou música dentro do mundo ficcional, audível pelos pelos personagens, e mudar para o caráter extradiegético, onde apenas o público escuta, assim, o sound design a converte em Trilha Adaptada.
Nota: O som diegético pode ser "On Screen" (a fonte sonora está visível no quadro) ou "Off Screen" (a fonte é presumida, mas não está visível, como o som de uma sirene vindo de fora da janela).
Historicamente, o conceito de diegese é frequentemente contrastado com o de Mimese (Imitação/Representação, termo de Platão e Aristóteles):
3. Ponto de Escuta (Point of Audition)
Define a perspectiva de onde o espectador está "escutando" a cena:
Objetivo (Observador Neutro): O som é captado com acústica e volume realistas para a locação.
Subjetivo (Perspectiva do Personagem): O som é filtrado, distorcido ou intensificado para refletir a audição física ou psicológica de um personagem
(conexão com o som Intradiegético).
O Sound Designer supervisiona a criação e inserção de todos os sons (exceto o Score).
Contribuição de Rodriguez: O trabalho do Sound Designer Articulação Multidisciplinar. Segundo Ángel F. Rodriguez, a função do desenho de som (sound design) é induzir a leitura do mundo ficcional, verificando como os estímulos sonoros (limpeza, consistência, ambiência) se unem para gerar a percepção desejada. O sucesso técnico garante a coerência psicológica do som.
Módulo 04: Música na Pós-Produção
1. Trilha Musical Adaptada (Source Music) e Licenciamento
A Trilha Adaptada é qualquer música já existente que é incorporada ao filme (em contraste com o Score, que é original)
2.A Transição Diegética para Extradiegética
É uma técnica sofisticada onde uma música que está tocando em cena (diegética) é gradualmente transformada em trilha sonora (extradiegética) ao manipular:
O efeito é um aumento dramático, pois a emoção da cena é tirada do ambiente e internalizada na experiência do espectador.
3. Fluxo de Trabalho Musical
O Som Direto é o primeiro e mais importante passo para um áudio de qualidade.
Para iniciar a carreira em Som Direto e Pós-Produção no audiovisual, é essencial focar em equipamentos que garantam a qualidade técnica necessária sem comprometer o orçamento. Um Kit de Entrada Profissional deve priorizar a funcionalidade e a fidelidade do áudio.
O objetivo do Som Direto é obter o áudio mais limpo e fiel possível na locação. Cinco itens são indispensáveis para este trabalho:
Microfone Shotgun (Boom): O microfone principal para o diálogo, essencial por sua alta direcionalidade (Hipercardióide), que isola a voz dos atores do ruído ambiente.
Exemplos de Marcas: Rode, Sennheiser, Boya.
Gravador Portátil: A central de captação. Deve possuir entradas XLR e Phantom Power (+48V) para alimentar microfones condensadores (como o Shotgun).
Exemplos de Marcas: Zoom (H4n Pro, H6), Tascam (DR-40X).
Vara Boom: Usada pelo operador para posicionar o Shotgun fora do quadro, mas perto da fonte sonora. A leveza é crucial para longas jornadas de filmagem.
Cabos XLR: Essenciais para a conexão balanceada e livre de ruído entre o microfone e o gravador.
Fones de Ouvido (Fechados): Indispensáveis para o monitoramento em tempo real no set, permitindo ao técnico de som identificar ruídos indesejados (como fricção de lapela ou ruído de set) que não seriam notados a olho nu.
Custo Médio de Investimento (Som Direto Essencial): A média de custo para adquirir apenas os componentes essenciais de captação (Gravador, Shotgun, Vara, Fone e Cabos) fica em torno de R$ 5.000 a R$ 6.000.
Após a filmagem, o material de áudio é levado para o estúdio de pós-produção (Edição de Diálogos, ADR, Narração). Dois itens são cruciais nesta etapa, além de um computador e softwares especializados:
Microfone Condensador (Estúdio): Usado para gravar o ADR (Diálogo regravado) e Narração. Condensadores de diafragma grande (como o Rode NT1-A) oferecem a sensibilidade e a qualidade necessárias para capturar a voz com riqueza de detalhes e baixo ruído.
Interface de Áudio: Dispositivo que conecta o microfone Condensador (via XLR) ao computador. É responsável por converter o sinal analógico em digital com alta fidelidade (conversores AD/DA) e geralmente fornece o Phantom Power.
Exemplos de Marcas: Focusrite, PreSonus, Behringer.
Custo Médio de Investimento (Pós-Produção Essencial): A média de custo para adicionar os equipamentos de estúdio (Condensador de Entrada + Interface de Entrada) ao kit é de aproximadamente R$ 2.000 a R$ 2.500.
O investimento inicial total para cobrir as necessidades básicas de Som Direto e Pós-Produção fica na faixa de R$ 8.000 a R$ 9.000. Este valor garante um kit funcional e profissional, oferecendo a base técnica necessária para trabalhar com projetos audiovisuais independentes e ter clareza no diálogo (inteligibilidade).
EXEMPLOS DE NARRATIVA SONORA NA PRÁTICA
Seguem mais exemplos de construção narrativa através do desenho de som, como a articulação som e imagem se apresenta como uma ferramenta ímpar na construção de sentido dentro de uma produção audiovisual.
A Conversação (The Conversation, 1974).
O protagonista, um especialista em vigilância, ouve e reouve obsessivamente uma gravação. O áudio do filme começa a se desfazer, a ter ecos e loops, refletindo o estado mental paranóico dele. O som vindo da fita é Intradiegético (o que ele ouve) e Subjetivo (como ele percebe).
O Som do Silêncio (Sound of Metal, 2019)
O design de som recria com precisão a experiência da perda auditiva (diálogo abafado, zumbido agudo, distorção das frequências graves). O público é forçado a experimentar o mundo do ponto de vista alterado do personagem.
Ilha do Medo (Shutter Island, 2010)
A música de fonte (geralmente peças antigas) é usada em flashbacks, mas com forte distorção, eco e flange. O som não é realista; ele é um índice da memória atormentada e da fragilidade psicológica do personagem.
2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968)
Kubrick utiliza o silêncio absoluto no espaço para criar uma sensação de vazio e vastidão. O som extradiegético só aparece na trilha musical para pontuar a grandiosidade, mas a ausência de som diegético (explosões, ruídos de motor) no espaço é um uso radical da diegese.
Psicose (Psycho, 1960)
O som da faca entrando no corpo não é realista; é o som agudo e seco dos violinos de Bernard Herrmann. O som acrescenta a violência e o horror que a imagem (editada rapidamente) sugere, manipulando a percepção do espectador.
CHION, Michel. O audiovisual: a audição e o som no cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.
TRATENBERG, Lívio. O monólogo interior no cinema. São Paulo: Brasiliense, 1994.
2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO. Direção: Stanley Kubrick. Produção: Stanley Kubrick. Reino Unido; Estados Unidos: MGM, 1968.
A CONVERSAÇÃO (The Conversation). Direção: Francis Ford Coppola. Produção: Francis Ford Coppola. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1974.
APOCALYPSE NOW. Direção: Francis Ford Coppola. Produção: Francis Ford Coppola. Estados Unidos: United Artists, 1979.
E.T. - O EXTRATERRESTRE (E.T. the Extra-Terrestrial). Direção: Steven Spielberg. Produção: Steven Spielberg e Kathleen Kennedy. Estados Unidos: Universal Pictures, 1982.
GUARDIÕES DA GALÁXIA (Guardians of the Galaxy). Direção: James Gunn. Produção: Kevin Feige. Estados Unidos: Marvel Studios, 2014.
ILHA DO MEDO (Shutter Island). Direção: Martin Scorsese. Produção: Mike Medavoy. Estados Unidos: Paramount Pictures, 2010.
O SOM AO REDOR. Direção: Kleber Mendonça Filho. Produção: Kleber Mendonça Filho. Brasil: Vitrine Filmes, 2012.
O SOM DO SILÊNCIO (Sound of Metal). Direção: Darius Marder. Produção: Bert Hamelinck e Sacha Ben Harroche. Estados Unidos: Amazon Studios, 2020.
PSICOSE (Psycho). Direção: Alfred Hitchcock. Produção: Alfred Hitchcock. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1960.
QUASE FAMOSOS (Almost Famous). Direção: Cameron Crowe. Produção: Ian Bryce. Estados Unidos: DreamWorks Pictures, 2000.